sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Cemitério de Guarda-Chuvas


Uma vareta para um lado, outra para outro, e outra ainda cravada no intervalo das pedras da calçada. A chuva de prata confunde-se com o metal. Um bocado de pano escuro, talvez castanho, encharcado. Vvvvvvvvvvvvvvvvv… Vvvvvvvvv... Abana, abana ao vento, suspenso entre as varetas. 
Chove tanto… A rua é um rio. A passadeira mal se vê na tarde escura. 
Mais um chapéu pelos ares. Parece um balão sem fio preso na mão do menino. Os limpa pára-brisas para lá, para cá, para lá, para cá. Tchuc-tchuc-tchuc-tchuc…

Os vidros embaciados deixam ver os faróis vermelhos, reluzentes, no carro da frente. A cortina de água bate nos vidros. Olha ali outro! Outro chapéu-de-chuva abandonado! Os braços de prata inertes no chão, cada um para seu lado. Está meio aberto e o pano rasgado é azul-turquesa [deve ser de senhora]. O cabo de madeira é em tons de mel e tem algo dourado [é de senhora, com toda a certeza]. Ali jaz, ao frio, à chuva, ao vento. Sozinho, abandonado, molhado, perdido, esquecido para sempre. Morto e não enterrado. Devia haver lápides: “aqui jaz o guarda-chuva que chegou a ser feliz em muitas mãos. Eterna saudade.”

A rua é um cemitério de guarda-chuvas. Chove. Pedaços de guarda-chuvas sem dono espalhados pelas pedras da calçada. Chove. Chove mesmo muito. O prateado, o cinzento, o azul-turquesa, os faróis vermelhos sumidos. Tchuc-tchuc-tchuc-tchuc… Os carros em fila passam por eles, indiferentes. Poças de água no cemitério dos guarda-chuvas.

Por que abandonam as pessoas os seus chapéus de chuva outrora queridos? Eles, que sempre protegeram as pessoas da chuva. Eles, que nunca lhes falharam. E à primeira que lhes falham, as pessoas largam-nos na rua. Largam-nos da mão. Literalmente. Desumanos!

“Aqui jaz o teu guarda-chuva triste e abandonado”
[espera, não chores, ele já vem, já sei que queres ir para casa, tens saudades daquelas mãos, mas tens que ter calma, não posso parar o carro assim sem mais nem menos, compreendes?, sei que esta não é a tua rua, nunca te vi por aqui, não chores por favor, queres que te faça um chá?]

Um cemitério de guarda-chuvas sem flores nem jeito nenhum.

As pessoas deviam levar os seus guarda-chuvas doentes para casa. Deviam tratar deles com carinho. Uma compressa humedecida em água morna, mercurocromo nas feridas, uma gaze na pega de madeira, ligaduras nas varetas contorcidas e pensos ou adesivos no tecido rasgado. Deviam levar-lhes flores com cartõezinhos. “Boas melhoras!” E não pára de chover. 
[chá de quê?]

Fotografia: Ana Catarina Santos

2 comentários: