sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Montanha Mágica

Conheci um japonês no metropolitano de Madrid. Estava vestido de negro, usava óculos de massa escura, lentes rectangulares, calças escuras, creio que cinzentas. Devia ter uns trinta anos. Se bem que adivinhar a idade num oriental é sempre uma tarefa complicada.

[- E por que não poderia ser um chinês? Ou de outra nacionalidade?
 - É japonês. De certeza absoluta.
 - Como é que sabes? Ele nem sequer falou…
 - Pediu licença para se sentar. Baixou a cabeça quando fez a pergunta. Não olhou ninguém directamente nos olhos. Sentou-se discretamente. Ocupou o lugar sem se encostar em nada. Ninguém deu por ele. E pôs-se a ler.]

Era um livro japonês. Os caracteres de cima para baixo e da direita para a esquerda. Não resisti e fixei o livro. Ele percebeu que eu estava curiosa. Continuou a ler. Não tirei os olhos do livro e acho que até sorri. Tenho livros do género lá em casa, desde que no ano passado me inscrevi no curso de língua japonesa. Ele lia. Eu fixava as páginas. Ele mudava de página. Eu procurava detectar algo que me fosse familiar. E ele de olhos presos ao livro. Eu espreitava pelo canto do olho, insistente. Até que ele ajeitou o livro para que eu pudesse vê-lo melhor.

[- Apanhou-te!
 - Sim, mas eu também não estava propriamente a ser discreta.
 - E falaram? Comunicaram? Ele olhou-te nos olhos?
 - Falámos.
 - Sobre o quê? Que livro era?]

Fechou o livro e mostrou-me a capa. Era um livro de capa mole, amarelado, discreto. Um palmo de livro, quase de bolso. Apontou com o dedo indicador para os caracteres que estavam no topo da página. Tinha o dedo magro, muito branco, de unha aparada e limpa. Ouviu-se uma voz baixinha e hesitante. “Magic” – apontou para um quadradinho riscado. “Mountain”, indicou outro conjunto de traços. Sorriu timidamente. Sorri-lhe também.




Falámos sobre o Japão, sobre Tóquio, sobre o bairro de Roppongi, sobre o mercado do peixe, sobre os jardins de pedra, sobre os templos de Quioto, sobre o Templo Dourado, o meu preferido. E falámos sobre Portugal, e sobre Sintra, e para onde ele ia a seguir a Madrid, e de onde tinha vindo. Disse-me que já tinha visitado Lisboa e até tinha ido à “Loca”. 
- À Loca?!
- Loca Cape.
- Ah, Roca Cape…
O Cabo da Roca. O simbólico ponto mais ocidental da Europa continental. Fechou o livro. “A Montanha Mágica”, de Thomas Mann.

Livros. Japão. Perguntei-lhe se gostava de Murakami.
- Mais ou menos. Ele escreve melhor em inglês do que em japonês. No resto do mundo é mais reconhecido e conceituado do que no Japão. É bom, mas não está no meu top five. Escreve melhor em inglês.
- E quem está no teu top?
Disse-me o nome de um japonês que não consigo reproduzir. Devia ter apontado no meu bloco de notas, mas não o fiz. Pedi-lhe que repetisse. Não percebi. Não consigo agora lembrar-me do nome ou sequer reproduzir a sonoridade. Disse-lhe que não conhecia, que nunca tinha ouvido falar.
- E também o Mishima. Esse sim, está no top dos dois ou três melhores. O Murakami está entre os dez, mas fora do pódium.
- Ah, o Mishima conheço. Já li alguns dele. É excelente!

A carruagem do metro parou. Procuramos ambos o letreiro na estação para comprovarmos que não tínhamos perdido a paragem. Estávamos em Mar de Cristal, na linha 8. Faltavam umas duas ou três paragens.

            [- Estás encantada a falar do japonês. Era giro?
             - Não. Nada disso.
             - Apaixonaste-te pelo japonês?
              Ri-se e atira o corpo para trás.
  - Que disparate! Tu conheces-me. Sabes que não me agradam particularmente os orientais. Era simpático, só isso.
  - Só isso?
  - E interessante.
  - Humm…]

Continuámos a conversar.

- E não achas que Thomas Mann é uma leitura um pouco pesada para se ler no metro?, inquiri.
- Para mim não – respondeu prontamente.
- Não?
- Se fosse Hegel ou Kant talvez te dissesse que sim.
Arregalei os olhos, fixando-o de frente. Ele olhava-me de raspão nos olhos mas não me fixava.
- Gostas de filosofia?
- Sim. Gosto de filosofia, não de filósofos. Mas, na verdade, ainda estou à procura do meu caminho.

[- My way, disse-o em inglês.
 - My way…
  Silêncio. Pausa.
 - Ele está a ler a Montanha Mágica, do Thomas Mann, à procura do seu caminho.]

A carruagem do metropolitano parou. Gente a sair e a entrar. Nuevos Ministérios. Era a minha paragem. E a dele. Levantámo-nos. Saíamos ali. Uma hesitação.

            [- Como se despediram?
             - Normal.
             - Normal como?]

Dou-lhe dois beijos? Um cartão de visita? Trocamos números de telefone? Ou nada? Hesitei. E ele também.

            [- Mas afinal como se despediram?! Ficaste com o contacto dele?]

- Adeus. Que tenhas um bom dia. - disse-me vagamente sorrindo.
- Adeus. Tu também.
- Que tudo te corra bem.
- E a ti. E espero que encontres o teu caminho.
- E tu o teu.

Um aceno de mão do lado de lá. Um aceno de mão do lado de cá. A uns passos de distância. Um jovem japonês parado, de pé, a olhar-me de frente. Algumas pessoas atravessaram-se pelo meio, a correr para o metro, enquanto soava o sinal de que as portas iam fechar-se no instante seguinte. O japonês parado. A mão direita no ar, parada. O livro na outra mão, caído junto à anca.

Procurei a placa que me indicasse a saída. O meu caminho.



terça-feira, 15 de outubro de 2013

Ao vapor

Hoje não me apetece sair do duche. Aqui na minha cápsula, na minha concha, estou aconchegada. Água quente escorrendo pela nuca. Olhos fechados. Respiração lenta. Vapor por todo o lado. Nada se vê, nada se mexe, nada se ouve. Nem liguei o rádio. Silêncio. Só se ouve o som da água a cair. Tchchchchchchch… O chuveiro, lá no alto, abundante. Água dura. Como uma cascata no meu crânio cansado.

Percorro o meu dia de olhos fechados. Falo para dentro enquanto o duche me alivia. “Devia ter feito isto ou aquilo. Simpático, aquele almoço. Bolas, esqueci-me de ligar a alguém.” 

Organizo o meu cérebro amolecido pela água quase a escaldar. Derreto as minhas defesas. 

Sinto calor. Talvez esteja a transpirar. A pele das costas já deve estar quase escalfada. Sabe tão bem. Estou em banho-maria. É quase um casulo, de tão bom. Puxo os ombros para trás, rodo o pescoço, olhos fechados, estico os braços tacteando a água que me foge dos dedos. 

Hoje não me apetece sair daqui. Tchchchchchchch… Eu e o chuveiro.

As paredes molhadas. O espelho embaciado não me olha espantado, como pela manhã. Nem sequer o espelho me vê. A pele amolece. Ao vapor. Eu também. Quebro. Hoje não me apetece sair do duche.



sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Trato o Outubro por tu


Trato o Outubro por tu. Conheço-lhe os truques todos. Gosto do Outubro porque me desafia. Quando arrumo os algodões lá vem ele meter-se comigo à janela.
- Bom dia! Trago-te os primeiros pingos.
- Bom dia, Ó Tu…
Digo isto para o picar. Detesta que o trate só por “Ó-Tu”.
- O meu nome é Outubro. Ou-tu-bro, entendeu? Com dois "u's".
Rio-me. Ele irrita-se. E, nesse caso, chuvisca.

Temos longas conversas, eu e o Outubro.
Trato-o sempre por tu, não que ele me tivesse dito para o fazer. Habituei-me a tratá-lo assim e não me imagino a tratá-lo doutra maneira. Ele, porém, não. Nunca se sentiu à vontade para me tratar por tu. Já insisti mas ele resiste. 
É um artista, este Outubro. Faz-se difícil. É para manter uma certa distância e fintar-me sem ficar com problemas de consciência. Conheço-o de ginjeira!
- Tiraste a gabardine para quê? Hoje estou de esplanada. Vais querer mesmo sair de gabardine?
Ri-se, o pirata. Ri-se de mim.

O Outubro sabe que eu gosto de prolongar os Setembros. Nunca lhe escondi que o Setembro é o meu favorito. Fica amuado e ciumento com isso, o meu querido Outubro.
- Anda cá, deixa-te de fitas… Fica aqui. Traz tu a manta, que eu levo o vinho tinto. 
Mas ele insiste nas voltas vadias. 




quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Abreijos abjectos

Há cada vez mais gente a recorrer à expressão "abreijos". Considero a palavra "abreijos" detestável. Ou são abraços ou são beijos. Um abraço vale por si. E um beijo vale por si. "Abreijos" é que não, pelas almas!


quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Mar guerreiro

E ali estavas, sentado, a olhar o mar. O mar estava agitado. Estavas em silêncio. E tu, sentado, à janela do mar. Olhar brilhante, fixo. O reflexo do mar nos teus olhos. Só tu, tão menino. E o mar, tão homem. Só tu. E o mar guerreiro.




sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Meia dose

- Bom dia!
- Bom dia. Em que posso ser-lhe útil?
- Queria meia dose de amor.
- Como?
- Meia dose de amor, se faz favor.
- Meia dose?
- Sim, por favor. Para embrulhar.
- Meia dose não vendemos.
- Não?
- Não. Só dose inteira.
- Uma dose inteira de amor?
- Sim. Só vendemos doses completas.
- Humm… Mas isso assim não me dá jeito.
- Ora essa... Porquê?
- Porque vai sobrar. Não dou conta disso tudo.
- Claro que dá!
- Não, não. É imenso…
- Olhe que estou aqui há muitos anos e nunca nenhum freguês me pediu só meia dose de amor.
- Pois, mas uma dose inteira é muito para mim. Não consigo mesmo. Desculpe.
- Não tem nada que pedir desculpa. É assim mesmo. Estamos cá para isso.
- Obrigada. Até logo!
- Adeusinho.