quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Conversa sem guião

Conduzia pela cidade depois de ter dado uma maratona de aulas. Estava com a cabeça num nó. Liguei o rádio do carro e sintonizei a Antena2. A música calma e a conversa sobre livros acompanharam-me junto ao Tejo no regresso a casa.

Duas pessoas falavam de viagens, de Berlim, de São Paulo, de Moçambique. E o homem a querer falar do livro. E ela a querer falar da vida. E ele, então, percebeu e deixou-a fluir. E ela, a escritora Teolinda Gersão, começou a falar sem guião: a chuva que liberta, os contos africanos, a árvore das palavras, o livro dos anjos, as águas livres, as almas livres, as histórias inacabadas como na vida…

Tão bom… Uma conversa à solta. Sem guiões.

E houve uma frase que retive. Disse ela qualquer coisa como “não sei como só tão tarde me dei conta da vida que passou por mim sem que eu desse conta enquanto era cedo.” 

Esta ideia não me sai da cabeça. 











sábado, 22 de fevereiro de 2014

Avessos

Eras para ter vindo, não vieste. 
Eras para ter ficado, saíste.
Era para estar sol, choveu.
Era para ser, não foi.
Há dias em que o mundo parece ao contrário.



sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Banhos de silêncio

Enche a banheira de água quente. Não fales. Dói-me muito a cabeça hoje. Preciso apenas de te saber aqui. Calado. O silêncio pode ser maravilhoso. A água a correr. O vapor da água quente. O espelho difuso. A banheira que enche. O silêncio. O meu corpo nu projectado no espelho. Embaciado. A minha pele pálida. O teu olhar sereno. Gosto que não me perguntes porquês. Calemo-nos apenas. Um banho de silêncio. Quente.



segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Vermelho

Tinha o coração tão exaltado 
E o sangue tão desenfreado 
Que o devaneio descontrolado 
Começou a tingir-lhe o cabelo









sábado, 15 de fevereiro de 2014

Prémio

Recebi primeiro um telefonema. No outro lado da linha, uma voz serena e segura. Ouvi mais do que falei. Ia registando palavras soltas: "Manuel António Pina", "Poesia", "Infusão", "Textos de Amor", "Prémio", "2º lugar", "Parabéns". 
Ainda não estava a acreditar. Eu? Um prémio de poesia? 
- "Tem aqui um maravilhoso texto", dizia o Presidente do Júri ao telefone. 

A notícia oficial chegou uns dias depois, por escrito: "Agradecendo a sua participação na edição de 2013 do Concurso Nacional Textos de Amor Manuel António Pina, venho renovar as felicitações pelo 2.º Prémio Nacional obtido com o seu texto "[In] Fusão", de entre cerca de 900 textos que recebemos."

O texto "[In] Fusão" foi escrito aqui, pela primeira vez, neste blogue. 

Há prémios que nos enchem o coração. 



Notícia publicada aqui

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

A écharpe do bazar

Na plataforma da despedida já chamavam os últimos passageiros para o embarque. Passos apressados de um lado para o outro, cigarros fumados nervosamente e à pressa, uma criança a chorar, atirando-se para o chão. A chuva batia nos vidros com violência. “Que frio. Ainda bem que tomei aquele café quente”.

Levava o bilhete e o passaporte na mão. Mexia no telemóvel como se estivesse à espera que lhe entrasse uma última mensagem antes de o desligar. “Desligo só quando estiver sentado lá dentro”.
- Boarding pass, please!
Mostrou os documentos. Tinha pela frente onze horas de viagem.

Ouviria música, veria alguns filmes originais sem legendas, leria algumas páginas do livro antes de tombar o pescoço, adormecido.
Encolhido no estreito banco da classe económica voltou a mexer no telefone. “Então, não diz nada? Nem um ‘boa viagem’, nem nada?…”

Ela estava no escritório. Sabia que àquela hora ele estava prestes a descolar. Se tudo corresse bem só voltaria a vê-lo daí a algumas semanas. Não se tinham despedido. Aliás, pouco falaram por estes dias. Torcia para que tudo corresse bem. A Índia é um país de enormes contrastes. Viria mais magro, talvez diferente. O telemóvel vibrou. “Será dele?” Não era. Apagou a mensagem quase sem a ler. Era uma publicidade de descontos de um supermercado. Atirou o telefone para cima da secretária.

Ele apertou o cinto de segurança. Puxou as costas do banco para a frente. Olhou uma última vez o visor. Desligou o telefone.

Ela queria ter ido ao aeroporto. Dar-lhe um beijo.
Ele também queria que ela tivesse ido. Dar-lhe um abraço.
- Vens?
- Voltas?

O avião descolou. Ela olhou para o relógio. Ele respirou fundo. Não se despediram.

As viagens, mesmo as de longo curso, não apagam os lugares de partida. Nem alteram os destinos à chegada.

Traz-me um beijo com especiarias. E uma écharpe de seda. 








quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Da Rádio

Hoje é o Dia da Rádio. No meu caso, até podia ser hoje o Dia dos Namorados. Namoro com a Rádio todos os dias.


quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Pára

Inventaram o pára-choques para protegermos a chapa dos embates.
Inventaram o pára-chuva para protegermos os cabelos dos pingos.
Inventaram o pára-brisas para podermos abrir os olhos na viagem.
Inventaram o paradeiro para podermos desfrutar a espera.
Inventaram o parapeito para podermos olhar as estrelas à janela.
Inventaram o parágrafo para podermos aplicar os pontos finais.
Inventaram o paradoxo para podermos hesitar e reflectir.
Até inventaram o paraíso, a promessa pintada do que há-de vir.
Como é que ninguém ainda inventou um pára-dor?
Nem ao menos um amortece-dor?


Mi e Dor de Toamna Culoare Vita Vie Soalere Cald Si Picture

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Noite

Ela sabia que o dia seguinte era um dia importante. Ela sabia que não poderia chorar. Ela quis chorar por antecipação, para no dia seguinte as lágrimas sossegarem. Ela chorou por antecipação. E choveu toda a noite.


terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Opened door*

Quando a porta a que tanto batemos finalmente se abre não devemos perguntar porquê: porquê agora ou porquê eu ou será que é mesmo para mim. Abriu. Nada a declarar. Devemos simplesmente entrar a correr. Passar pela porta até aí fechada. Entrar. Antes que se feche outra vez.


Monica Zúñiga

* Texto inspirado numa sequência de diálogos da série The Good Wife