segunda-feira, 30 de março de 2015

Uma música que escorre dos céus









O Mar, Fausto Bordalo Dias

E todo o mar se cobriu de infinitas riquezas
de anil e sedas e jóias e de odoríferas drogas
de si deitava nas praias moscatéis e licores
adoçando de sua bravura
o mar
nas margens adamascadas andam náufragos dispersos
mariscando lagostas ostras choupas taínhas
e bebem vinhos distintos de singulares aromas
se anda ao longo da costa em ofertas
o mar

E entregou Leonor
seus cabelos aos ventos
na quietude tão só
tão ausente de tudo
e mais quieta era a luz
no sossego das águas
e uma música escorre dos céus
devagar

E fazem tendas de aduelas de alcatifas majestosas
de outras peças de ouro e prata de cambraias e cetins
cobertas de colchas vermelhas de rosários de cristal
mas mais garrido do que toda aquela praia
o mar
e fazem velas das camisas e outras de damasco verde
as amarras de outros panos de veludo carmesim
de um remo fizeram o mastro
e a enxárcia de uma linha
e tão docemente embala este batel
o mar

Se todo o mar se cobriu de infinitas riquezas





terça-feira, 10 de março de 2015

Distraio-me com facilidade nos regressos

Distraio-me com facilidade nos regressos. É assim no carro, no metro, no comboio ou no avião.

Na idas sinto sempre uma tensão que faz com que torne fosca a luz do sol lá fora. Sinto que passo à pressa pela margem do rio sem o mimar. Atiro um olhar fugidio para o céu, olhar egoísta só para ver se me vai chover em cima. Às vezes nem tenho a certeza se o miro nos olhos. Deslizo o nariz pelos novos cheiros de pólen primaveris, mas não os sinto como merecem. Trituro a paisagem rasgada pela velocidade do lado de fora do vidro, sem vibrar. 

O regresso é diferente. Quase sempre já noite. Quase sempre já mais calmo. Silencioso, dócil, lento. Regresso com calma e com um leve sorriso distraído. E distraio-me com facilidade. Perco-me nos detalhes que ontem, também no regresso, não tinha reparado. Invento trajectos porque já não tenho pressa para ir pelo mais rápido. Esqueço-me dos mapas, das regras, dos ruídos, das preocupações. Cansada, mas mais solta. Exausta, por vezes, mas mais leve. Mais disponível para a surpresa. Mais atenta por estar distraída. Mais viva por estar de regresso.

A vida passa mais depressa nas idas.