A casa parecia estar sempre cheia de gente. A Abuela Elena enchia a casa com a sua voz. Falava alto como pouca gente sabe fazê-lo sem gritar. Ainda vinha a descer a rua ou a subir as escadas do prédio, e já se ouvia a Elena. Uma lenga-lenga castelllana, sempre a reclamar com alguém ou com alguma coisa. Ou porque demorámos a abrir a porta, ou porque deixámos a janela aberta, ou porque a mesa estava suja ou porque qualquer coisa.
Quando eu e os meus primos dormíamos lá em casa, tínhamos sempre serviço de despertar personalizado. Às 8 ou 9 da manhã, no máximo, independentemente de nos termos deitado de madrugada (a noite de Madrid é exigente!), entrava no quarto, batia palmas, tipo castanholas, abria as janelas e chamava-nos tudo e mais alguma coisa, carinhosamente. "Venga hijos de puta! A acordar! Pero como duermen tanto?!"
Estremunhados, ensonados, por muito que nos quiséssemos revoltar, acordávamos à gargalhada.
Era a única pessoa a quem eu gostava de ouvir chamar-me "cabrona". "Que cabrona, como come!"
Era uma mulher inspiradora. Uma batalhadora. Venceu um cancro há muitos anos, que lhe roubou dezenas de quilos, que lhe trouxe dor, rugas e cabelos brancos. Mas ainda mais o sentimento de vitória. "El hijo puta no me va a pegar!". E não a apanhou. Vencia tudo, a grande Elena.
Elena, já nos oitentas, continuava a dançar "à espanhola" com salero, batia as palmas das mãos em concha com ritmo, inclinava ligeiramente a cabeça, olhava por cima do ombro, para ver quem a mirava a bailar, batia o pé com firmeza no chão ao som da música, franzia a testa como uma verdadeira dançarina de sevilhanas. Vaidosa, caprichosa, cheia de personalidade e génio. Cheia de vida. Na véspera de morrer, ainda cantava. Enchia sempre a nossa vida, a nossa casa, os nossos dias. Ria-se e gozava de todos, com todos. E tinha um coração generoso, de manteiga.
Elena. Abuela Elena. A última vez que a vi, dormia. Quase sorria, serena. Não quis missa. "Los curas son todos unos hijos de puta!". Fez-se-lhe a vontade. Pena que não disse que não queria morrer. Devia ter dito: "la muerte es toda una hija de puta!". Porque é.
Hasta luego, Abuela Elena...
Obrigada Ana.
ResponderEliminarJá tinha percebido pelo que a Marta escreveu e pelo que escreveram à Marta, que tinha falecido uma “abuela Elena”. Na árvore da minha família, com ramos que se estenderam a Espanha, não consigo saber quem era a Avó Elena – mãe do Chel? Sogra de alguma das minhas primas Marta e Rosa? No fundo, não importa, porque acho que escreveste um texto lindo, Ana, melhor homenagem não podia haver. É um “De Profundis” ibérico, texto tricotado pelo teu talento com as agulhas da blasfémia castelhana. Ana, se há coisa boa no (meu) envelhecimento, é vermos as nossas crianças que nos habituaram a infatigáveis brincadeiras e a irredutíveis birras, crescerem, tornarem-se lindas e escreverem e falarem coisas cada vez mais inteligentes. Obrigado, Ana … estou a pensar se a “abuela Elena” ao cerrar os olhos, não se terá chateado e exclamado “HODER”. Beijinho, querida …
ResponderEliminarQuerido Tino, muito obrigada pelas tuas palavras tocantes. O ser humano é mesmo a melhor invenção do "tal" Deus... Se há coisa boa no meu (também) envelhecimento, é poder hoje apreciar sentimentos que desconhecia nessa ida infância que recordas. E dar cada vez mais valor a pessoas que, nessa ida infância, eram apenas mais um adulto que estava sempre ali. Hoje é bom saber que estás sempre aqui, perto. Cada vez mais perto.
EliminarUm beijo enorme.
Ana