segunda-feira, 11 de março de 2013

Sacana implacável


Ir velar um corpo é sempre uma missão estranha. Velar um corpo. A expressão é antiga, quase popular, mas comporta em si mesma uma enorme carga dramática. Velar, de velório. Velar, de vela acesa ao lado de um corpo.

Velar até podia ser bonito: velar, de vela, de barco à vela, de mar, de como quem ganha vento e invade o mar, soltando amarras da terra. Velar. Volar. Voar. Em paz.

Mas não. Os velórios que frequento não são leves. E são cada vez mais frequentes.

A idade é proporcional ao número de pessoas que velamos. Cada vez vou a mais funerais. Não que morra mais gente, mas que a minha gente tem mais idade, e eu tenho mais idade, e as pessoas com mais idade morrem mais.

Lá fui velar o corpo de uma pessoa que nunca tinha visto. Ir velar um corpo que a mim não me diz nada, mas que diz muito a uma pessoa que a mim me diz muito.

A morte é sempre uma sacana implacável que ataca quem lhe apetece. Lá se saciou mais uma vez, luxuriante.

A família entre o aperto da perda e o conforto da presença dos outros. A pessoa que me diz muito [abraço-te] que perdeu a pessoa que eu não conhecia [abraço-te muito] agradecia incomodado, tímido, entre o aperto da perda e o conforto da presença dos outros. Que não devíamos ter ido, que andamos a apanhar chuva, que são tantos quilómetros, que somos malucos, que não fazia falta, que se fazia tarde, que era melhor irmos andado, que – por favor – regressássemos devagar.

Não me aproximei do morto, apenas da pessoa para quem o morto era importante. Nem sequer lhe vi o rosto, a não ser na fotografia à entrada da igreja. Não quero conhecer já morta uma pessoa que não conheci viva. Não vou poder cumprimentá-la nem procurar-lhe o olhar, ver-lhe os dentes no sorriso.

Não avancei para além da penúltima fila de bancos da igreja. Só vi o corpo ao longe. Mas consegui ver-lhe a calvície. O alto da cabeça de um morto. Uma cabeça morta. Sem um único cabelo morto. Um senhor calvo. A morte não poupa sequer os calvos.

Dei por mim a imaginar-lhe a vida e a construir histórias. Quem seria, como seria, quem deixaria, que me contaria, que lhe perguntaria, como seria a sua gargalhada, o seu tom de voz.

O melhor do mundo é conhecer as pessoas e as suas histórias. Vivas. Neste caso, cheguei tarde de mais. Ouvi falar muito de si. Gostava de o ter conhecido antes.





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