Ir velar um corpo é sempre uma missão estranha. Velar um
corpo. A expressão é antiga, quase popular, mas comporta em si mesma uma enorme
carga dramática. Velar, de velório. Velar, de vela acesa ao lado de um corpo.
Velar até podia ser bonito: velar, de vela, de barco à vela,
de mar, de como quem ganha vento e invade o mar, soltando amarras da terra. Velar.
Volar. Voar. Em paz.
Mas não. Os velórios que frequento não são leves. E são cada
vez mais frequentes.
A idade é proporcional ao número de pessoas que velamos. Cada
vez vou a mais funerais. Não que morra mais gente, mas que a minha gente tem
mais idade, e eu tenho mais idade, e as pessoas com mais idade morrem mais.
Lá fui velar o corpo de uma pessoa que nunca tinha visto. Ir
velar um corpo que a mim não me diz nada, mas que diz muito a uma pessoa que a
mim me diz muito.
A morte é sempre uma sacana implacável que ataca quem lhe
apetece. Lá se saciou mais uma vez, luxuriante.
A família entre o aperto da perda e o conforto da presença
dos outros. A pessoa que me diz muito [abraço-te] que perdeu a pessoa que eu não
conhecia [abraço-te muito] agradecia incomodado, tímido, entre o aperto da
perda e o conforto da presença dos outros. Que não devíamos ter ido, que andamos
a apanhar chuva, que são tantos quilómetros, que somos malucos, que não fazia
falta, que se fazia tarde, que era melhor irmos andado, que – por favor – regressássemos
devagar.
Não me aproximei do morto, apenas da pessoa para quem o
morto era importante. Nem sequer lhe vi o rosto, a não ser na fotografia à
entrada da igreja. Não quero conhecer já morta uma pessoa que não conheci viva.
Não vou poder cumprimentá-la nem procurar-lhe o olhar, ver-lhe os dentes no
sorriso.
Não avancei para além da penúltima fila de bancos da igreja.
Só vi o corpo ao longe. Mas consegui ver-lhe a calvície. O alto da cabeça de um
morto. Uma cabeça morta. Sem um único cabelo morto. Um senhor calvo. A morte não
poupa sequer os calvos.
Dei por mim a imaginar-lhe a vida e a construir histórias. Quem
seria, como seria, quem deixaria, que me contaria, que lhe perguntaria, como
seria a sua gargalhada, o seu tom de voz.
O melhor do mundo é conhecer as pessoas e as suas histórias. Vivas. Neste caso,
cheguei tarde de mais. Ouvi falar muito de si. Gostava de o ter conhecido antes.
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