segunda-feira, 1 de abril de 2013

Peixinhos da horta em Hiroshima

Há um silêncio estranho na cidade. Aqui ouvem-se mais os corvos.
Também vi muitos corvos, enormes, em Kyoto. Mas aqui, lá de cima, gritam mais alto. Ou o silêncio aqui em baixo é mais forte.
Escrevo numa esplanada junto ao Rio Motoyasu-gawa e sinto que tudo nesta zona tem uma carga dramática. Estou no Parque da Paz, em Hiroshima, junto ao Memorial da Bomba Atómica. 

As pessoas agem com respeito. Como se não quisessem interromper uma oração, uma reflexão. As pessoas em Hiroshima cumprimentam-se. Sorriem. Em silêncio.
Por que gritam os corvos? Shiuh!
Na esplanada os empregados correm para servir os clientes. Correm literalmente, para não fazerem ninguém esperar. E pedem desculpa por tudo e por nada.
Hiroshima é uma cidade estranha. Incomoda-me a memória. Aviva-me a história que ditou milhares de mortos e milhares de vivos estropiados. E por isso vêem aqui milhões de turistas, como eu. Hiroshima teve a minha visita pelas piores razões. Vem no mapa não por ser quem é, mas por ter sido tratada como foi. 

Mais um sorriso dócil que passa e me cumprimenta. São amáveis, os de Hiroshima.
Ouço, com cadência certa, sinos. Tocam ao longe, no parque, assinalando a memória.
A cidade tenta combater a memória de cinzas de todas as maneiras. É colorida, as fachadas dos prédios são amarelas, laranja, vermelhas. Por todo o lado há placas e cartazes coloridos com os lema da cidade, repetindo para que se torne verdade que Hiroshima vale a pena, que aqui há sentimento, alegria, que há cor e vida, não apenas memória de cinzas de uma destruição em massa. "Love the city", "Color your life in Hiroshima", "Be happy", "Make love not war in Hiroshima!", vou lendo aqui e ali. 

Interrompem-me a escrita.
- "Can I take a photo?"
- "What?"
- "Photo. You. Ye, ye, ye, ye..."
Ri-se. E baixa a cabeça. Quase pede desculpa.
- "Sorry. Ok?"
E curva-se à minha frente com uma máquina fotográfica na mão.
- "Sure!"
(Avisaram-me que isto podia acontecer fora das grandes cidades. Tiram fotografias aos turistas e pedem para ser fotografados ao lado deles.)
Sorrio para a foto na esplanada. Está sol. O meu cabelo brilha. Os meus olhos também.
Clic.
- "Another, please?"
Agora com o telemóvel.
- "Yes, sure!"
Sorrio. Um vento sereno no meu cabelo.
Clic.
- "Thank you, thank you! Beautiful, beautiful!"
Sorrio. O empregado de mesa aproxima-se. 
O rapaz percebeu. Não quer incomodar.
- "Sorry. Sorry. Sorry..."
Três vezes.
Sorrio mais ainda.
- "It's ok!"

Gosto dos de Hiroshima.
Sol na esplanada. O Rio Motoyasu-gawa sereno. As cerejeiras em flor ao longo de todo o Rio. 
Cheira bem, o prato. Chegaram os meus peixinhos da horta de Hiroshima. 
"Tempura", expliquei-lhe, "é uma palavra portuguesa". 
- "What? I don't understand."
- "Tempura", insisti apontando para o prato.
Não percebeu que estava a tentar explicar-lhe que tempura tem origem no português "tempero".  
E repetia, sorrindo e apontando para o prato já à minha frente: "Yes, tempura. Good, good". 
- "Never mind. This tempura is delicious!".
Que maravilhosos peixinhos da horta!




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