Encontrei um S na rua. Mas não era um S qualquer. Era um S
grande que brilhava imenso na calçada, ao sol. Um S prateado, bem torneado, com
um tracinho em cada ponta. Como quem sabe exactamente até onde pode ir. Sabe que aquele seu S termina ali. Um S bem definido. Achatado reluzindo ao sol.
Um S perdido. Andaria à procura do quê, aquele S?
Bem, na verdade, não sei se aquele S estaria perdido. Podia apenas
querer estar ali. Parado a aquecer-se ao sol. Se andasse perdido, porventura, estaria
desesperado. Pediria ajuda a quem passa, gritaria pelo O e pelo outro S. Mas não. Aquele S
talvez não estivesse perdido. Pareceu-me um S cheio de si, ali sozinho, ao sol.
Teria andado colado a algum pescoço? Pendurado num fio? Podia ter-se cansado da
pele humana, talvez até do suor. “Ai, esta pele deste pescoço dá-me calor.
Vou-me embora!” Talvez não gostasse do cheiro da pele da pessoa que o trazia. Talvez
os S’s sejam demasiados sensíveis ao cheiro. Fartou-se. Foi à vida dele.
Estaria junto a outras letras? Seria a primeira de várias
letras de um nome? Sim, porque aquele S, tão robusto, não me parece que seja S
para ficar no meio ou no fim de um nome. É um S com ar de maiúscula. Um S com pose de inicial.
Agachei-me junto ao S para o ver mais de perto. Um S de
prata, cheio de si, cheio de pose. Sozinho na praça forrada a calçada portuguesa. Era
bonito, o raio do S...
- “Estás a olhar para o quê?”, desafiou-me.
- “Estás só?”, perguntei-lhe a medo.
- “Não. Vês aqui algum ó?”
Como é saboroso mastigar, degustar assim, inesperadamente, uma mistura de letras que se movem à procura de um sentido, rodopiando em torno das palavras que inventam, dançando até à revelação dos sentidos...
ResponderEliminarObrigado
Olá!... Devo confessar que o seu post tocou-me o sentimento e deixou-me de consciência pesada. Deixe apresentar-me … sou o “ó”. Não o Rui do Ó, nem qualquer outra pessoa que tem “Ó” como apelido. Sou simplesmente o “ó” que durante uns tempos viveu junto com o “S” que descreve, e do qual me separei recentemente. Talvez isso explique a reacção brusca dele à sua pergunta “Estás só?”.
ResponderEliminarFoi bom enquanto durou, mas há limites que não podem ser ultrapassados. Não consegui tolerar mais a sua promiscuidade. Várias vezes o apanhei acompanhado de outras letras, mas ele arranjava sempre desculpas.
Lembro-me do primeiro flagrante. Apanhei-o com um “é” numa placa que tinha escrito “Sé de Lisboa”. Disse-me que apenas tinha ido rezar e que eu estava a fazer “filmes”.
Depois vi-o com um “i” num cartaz que referia “Concerto de Chopin em Si menor”, mas como era menor, não liguei. Ele podia ter muitos defeitos, mas pedófilo não seria, seguramente.
Até que um dia, ao passar junto a um restaurante, reparei na ementa do dia e lá estava ele de novo, desta vez junto com um “á” e à vista de todos. Saltou-me a tampa!...Eu podia até tolerar que ele se envolvesse com outras letras, agora bacanais com bacalhau, batatas, azeitonas, ovos cozidos e cebola à mistura é que não!... Acabei logo tudo e abandonei-o na calçada.