O sinal estava quase vermelho e parei. Ia com tempo. Tinha o
vidro aberto e nem sequer havia muito trânsito. Braço de fora, rádio ligado
baixinho e um calor abafado em Lisboa. Ponto morto. Olhei distraidamente para o
lado de lá da estrada. Havia uma única pessoa à espera para atravessar a estrada.
O primeiro detalhe a captar a minha atenção foi o cachecol
vermelho, verde e amarelo que lhe cobria o pescoço, cruzado no peito. Ali
repousavam as letras "ugal". Fixei-o melhor. Tinha barba
grisalha, longa, descuidada. Tinha o cabelo despenteado, comprido, irregular.
Tinha calvície. Tinha testa alta cheia de rugas.
O sinal para os peões ficou verde. Começou a atravessar a
estrada. Olhou para baixo. Pisou o alcatrão devagarinho. Calçava uns ténis
castanhos de pano. Gastos. Rotos. Sujos. Sola gasta. Arrastava os pés. Mexia-se
lentamente. Um pé à frente do outro, passinhos curtos, hesitantes, calejados,
doídos. Trazia na mão um saco de plástico, cheio de coisas, usado e encardido.
A sua fortuna, os seus bens, o seu presente.
Usava um casaco preto, puído nos braços, com o forro
descosido em baixo. Preto, já quase cinzento. Era um casaco preto de executivo,
outrora. Há anos aquele casaco já teria passado, quem sabe, por escritórios
luxuosos na Avenida da Liberdade. Ou ali mesmo, nas Torres das Amoreiras.
Aquele casaco escuro cobria agora um homem velho sem destino nem tecto.
Passou a uns dois metros de mim, do meu carro em ponto
morto, que cheira a perfume e ao meu banho tomado. Não olhou para mim. Nem para
mais ninguém. Não desviou o olhar da estrada até chegar ao passeio do lado de
cá. Ainda estava verde para os peões.
O homem parou na esquina, depois de atravessar. Abriu o saco
de plástico, não fosse ter perdido algo pelo caminho. Olhou depois para a rua
em frente, que seria talvez o seu destino seguinte. De pé, aquele casaco preto
puído, amarrotado. O casaco de executivo à espera de ordens. De pé,
despenteado, com o nome e as cores de Portugal junto ao coração. Um sem
abrigo que traz ao peito as cores do meu país. O mesmo país que o mantém na rua.
Buzinaram atrás de mim. Tinha aberto o sinal verde. Olhei o
retrovisor, meti a primeira e avancei devagarinho. Voltei a fixá-lo, o homem.
Continuava parado no passeio, agora um pouco mais para lá. Encostou-se a um mupi com
fundo azul claro e ar fresco, que escrevia "haja alegria".
"Haja alegria", lamentei...
Não sei bem o nome daquela rua. Foi para os lados das
Amoreiras, algures em Campolide. Bem podia chamar-se a esquina da ironia.
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