Estive em Madrid e, mais uma vez, “renovei votos” com a
cidade. Adoro a energia que transmite, a alegria das avenidas, a naturalidade
das pessoas, o falar alto, o tratarem-te por tu, as mulheres arranjadas, os
narizes orgulhosos, as gargalhas, os cigarros acesos como se fossem a extensão natural
das mãos, as ruas cheias de gente, a luminosidade.
Mas Madrid tem, agora, outras pessoas. Ou talvez sejam as
mesmas, mas sem gargalharem e gesticularem de caña na mão encostadas à barra de
tapas. Madrid tem mais, muito mais, pessoas que estão sem-abrigo. Nunca vi
tanta gente a dormir na rua como vi por estes dias em Madrid. A crise tem
rostos, não existe apenas nos mapas estatísticos dos gabinetes.
Não gosto de olhar quem dorme na rua, olhos nos olhos. Sinto-me
uma invasora. É como se estivesse a espreitar para dentro de casa de alguém. Não
paro para olhar. Mas, de soslaio, à medida que percorria as ruas do centro, de
dez em dez metros lá estava um monte de mantas, sacos, papelão. E pessoas. Várias.
Espalhadas pela cidade. Pessoas. Vi casais. Vi pessoas sozinhas. Como eu, como
tu. Pessoas sem tecto. Pessoas sem casa.
Numa das esquinas junto à Praça Callao, em plena Gran Via, passei
por ela várias vezes. Uma pessoa a quem nunca vi o rosto. Não sei se mulher ou
homem, não sei se nova ou velha. Uma pessoa. Por baixo das mantas enxovalhadas vi a ponta
de um par de chinelos de plástico que pareciam ser um número pequeno – um 36 ou
37, talvez. E vi uma caixa de madeira que, outrora, teria transportado fruta fresca para um mercado. Servia de mesa-de-cabeceira. Estava virada ao contrário. Por baixo da caixa, havia alguns
objectos pessoais. Ao lado, encostada à parede, estava uma vassoura com um
pano amarelo enrolado, terminando com um nó.
Aquela pessoa vive ali, não tinha apenas passado ali aquela
noite. Aquela pessoa não tem casa, mas já teve e quer voltar a ter. Que ironia…
A crise que empurrou aquela pessoa para a rua é a mesma que mantém incomportáveis
os preços das casas e blindado o acesso ao crédito.
Bendita a opção de, uma vez na rua, ter ido viver para a avenida
mais cara da cidade. Um metro quadrado na Gran Via ronda os seis mil euros. Aquela
pessoa deitada juntamente com os respectivos pertences, ocupariam uns bons doze
mil euros.
Todos os sem-abrigo de Espanha deviam rumar à Gran Via! Todos!
Ocupariam cada metro quadrado daquela avenida de ouro, para envergonharem os
políticos, os banqueiros, os especuladores, os ladrões que passam nos Mercedes,
fumando charutos pagos com a miséria dos outros.
Todos os sem-abrigo à Gran Via! Todos os sem-tecto à Gran Via! Afinal, um T0 na Gran Via custa apenas doze mil euros. A avenida-postal de
Madrid transformar-se-ia numa manta de retalhos de pessoas que foram postas na
rua. Já que estão (estamos) na rua, ao menos que estejam(os) na mais cara.
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