Conheci um japonês no metropolitano de Madrid. Estava
vestido de negro, usava óculos de massa escura, lentes rectangulares, calças
escuras, creio que cinzentas. Devia ter uns trinta anos. Se bem que adivinhar a
idade num oriental é sempre uma tarefa complicada.
[- E por que não poderia ser um
chinês? Ou de outra nacionalidade?
- É japonês. De certeza absoluta.
- Como é que sabes? Ele nem sequer falou…
- Pediu licença para se sentar. Baixou a
cabeça quando fez a pergunta. Não olhou ninguém directamente nos olhos. Sentou-se
discretamente. Ocupou o lugar sem se encostar em nada. Ninguém deu por ele. E pôs-se
a ler.]
Era um livro japonês. Os caracteres de cima para baixo e da
direita para a esquerda. Não resisti e fixei o livro. Ele percebeu que eu
estava curiosa. Continuou a ler. Não tirei os olhos do livro e acho que até
sorri. Tenho livros do género lá em casa, desde que no ano passado me inscrevi
no curso de língua japonesa. Ele lia. Eu fixava as páginas. Ele mudava de página.
Eu procurava detectar algo que me fosse familiar. E ele de olhos presos ao
livro. Eu espreitava pelo canto do olho, insistente. Até que ele ajeitou o
livro para que eu pudesse vê-lo melhor.
[- Apanhou-te!
- Sim, mas eu também não estava propriamente a
ser discreta.
- E falaram? Comunicaram? Ele olhou-te nos
olhos?
- Falámos.
- Sobre o quê? Que livro era?]
Fechou o livro e mostrou-me a capa. Era um livro de capa
mole, amarelado, discreto. Um palmo de livro, quase de bolso. Apontou com o
dedo indicador para os caracteres que estavam no topo da página. Tinha o dedo
magro, muito branco, de unha aparada e limpa. Ouviu-se uma voz baixinha e
hesitante. “Magic” – apontou para um quadradinho riscado. “Mountain”, indicou
outro conjunto de traços. Sorriu timidamente. Sorri-lhe também.
Falámos sobre o Japão, sobre Tóquio, sobre o bairro de Roppongi,
sobre o mercado do peixe, sobre os jardins de pedra, sobre os templos de
Quioto, sobre o Templo Dourado, o meu preferido. E falámos sobre Portugal, e sobre
Sintra, e para onde ele ia a seguir a Madrid, e de onde tinha vindo. Disse-me
que já tinha visitado Lisboa e até tinha ido à “Loca”.
- À Loca?!
- Loca Cape.
- Ah, Roca Cape…
O Cabo da Roca. O simbólico ponto mais ocidental da Europa
continental. Fechou o livro. “A Montanha Mágica”, de Thomas Mann.
Livros. Japão. Perguntei-lhe se gostava de Murakami.
- Mais ou menos. Ele escreve melhor em inglês do que em
japonês. No resto do mundo é mais reconhecido e conceituado do que no Japão. É
bom, mas não está no meu top five. Escreve melhor em inglês.
- E quem está no teu top?
Disse-me o nome de um japonês que não consigo reproduzir. Devia
ter apontado no meu bloco de notas, mas não o fiz. Pedi-lhe que repetisse. Não
percebi. Não consigo agora lembrar-me do nome ou sequer reproduzir a sonoridade.
Disse-lhe que não conhecia, que nunca tinha ouvido falar.
- E também o Mishima. Esse sim, está no top dos dois ou três
melhores. O Murakami está entre os dez, mas fora do pódium.
- Ah, o Mishima conheço. Já li alguns dele. É excelente!
A carruagem do metro parou. Procuramos ambos o letreiro na
estação para comprovarmos que não tínhamos perdido a paragem. Estávamos em Mar
de Cristal, na linha 8. Faltavam umas duas ou três paragens.
[- Estás
encantada a falar do japonês. Era giro?
- Não. Nada disso.
- Apaixonaste-te pelo japonês?
Ri-se e atira o corpo para trás.
- Que disparate! Tu conheces-me. Sabes que não
me agradam particularmente os orientais. Era simpático, só isso.
- Só isso?
- E interessante.
- Humm…]
Continuámos a conversar.
- E não achas que Thomas Mann é uma leitura um pouco pesada para se
ler no metro?, inquiri.
- Para mim não – respondeu prontamente.
- Não?
- Se fosse Hegel ou Kant talvez te dissesse que sim.
Arregalei os olhos, fixando-o de frente. Ele olhava-me de
raspão nos olhos mas não me fixava.
- Gostas de filosofia?
- Sim. Gosto de filosofia, não de filósofos. Mas, na
verdade, ainda estou à procura do meu caminho.
[- My way, disse-o em inglês.
- My way…
Silêncio. Pausa.
- Ele está a ler a Montanha Mágica, do Thomas
Mann, à procura do seu caminho.]
A carruagem do metropolitano parou. Gente a sair e a entrar.
Nuevos Ministérios. Era a minha paragem. E a dele. Levantámo-nos. Saíamos ali. Uma
hesitação.
[- Como se
despediram?
- Normal.
- Normal como?]
Dou-lhe dois beijos? Um cartão de visita? Trocamos números
de telefone? Ou nada? Hesitei. E ele também.
[- Mas
afinal como se despediram?! Ficaste com o contacto dele?]
- Adeus. Que tenhas um bom dia. - disse-me vagamente sorrindo.
- Adeus. Tu também.
- Que tudo te corra bem.
- E a ti. E espero que encontres o teu caminho.
- E tu o teu.
Um aceno de mão do lado de lá. Um aceno de mão do lado de cá.
A uns passos de distância. Um jovem japonês parado, de pé, a olhar-me de frente.
Algumas pessoas atravessaram-se pelo meio, a correr para o metro, enquanto
soava o sinal de que as portas iam fechar-se no instante seguinte. O japonês
parado. A mão direita no ar, parada. O livro na outra mão, caído junto à anca.
Procurei a placa que me indicasse a saída. O meu caminho.
Gostei.
ResponderEliminarAjuda na procura do meu caminho.
Estamos todos à procura do mesmo. Cada um do seu.
ResponderEliminarObrigada.