quinta-feira, 3 de abril de 2014

A pessoa sozinha

Era uma pessoa sozinha. Pelo menos, estava sozinha esta noite. Atravessou, muito devagar, a estrada até meio. Parou no separador central junto a uns arbustos da sua altura.

Reparei nela quando espreitei a rua da minha janela, já perto da meia-noite. Estava frio e chovia. A pessoa sozinha ficou parada no pedaço de terreno que separa os dois sentidos da estrada. A pessoa não se mexia. Pensei que estivesse simplesmente à espera que os carros a deixassem atravessar a outra metade da estrada que lhe faltava. Mas não havia carros, nem para um lado nem para outro. E a pessoa ali estava, parada. Sozinha. De pé, a meio da estrada. Junto ao separador. Como um arbusto de pé. Com raízes na lama fria.

Vestia um casaco escuro, talvez negro, com um capucho que lhe tapava a testa e quase os olhos. Usava umas calças escuras e trazia calçados uns sapatos também escuros, talvez botas. O seu corpo encharcado, na noite escura, confundia-se com os arbustos molhados. Nenhum carro passou. A pessoa sozinha não atravessava porque não queria. Ali ficou uns minutos, não sei bem quantos.

Não consegui afastar-me da janela. Os vidros embaciavam com as minhas interrogações: quem é esta pessoa, por que está sozinha, por que está à chuva, por que não atravessa, por que não se abriga, por que não corre para o telheiro, o que espera, o que pensa, que lhe ocorre, o que lhe passou, quem é, que vida tem, o que precisa, quererá estar sozinha…

Os arbustos eram a sua única companhia. Até a chuva parecia estar espantada... Amaciou ligeiramente.

As luzes amarelas de dois faróis. Passou um carro devagar. Não viu a pessoa sozinha, nem sequer abrandou. Talvez a tivesse salpicado mais ainda. Limpei o vidro embaciado da janela, pois não conseguia ver com nitidez. Pareceu-me ver algum movimento junto aos arbustos. Sim, a pessoa sozinha moveu-se um pouco. Deu um passo. E outro. Aproximou-se da estrada. Ajeitou o capucho com a mão direita, olhou para o fundo da estrada, confirmou que não vinha ninguém e atravessou. A pessoa quase não andava. Arrastava os pés. Devagar, devagar, devagar. À chuva, de cabeça em baixo.

A pessoa sozinha trazia um saco de plástico enrolado na mão esquerda. Devia ter alguma coisa lá dentro, documentos, a carteira talvez. Não sei. O saco cobria algo que era pouco maior que a sua mão. Deslocou-se lentamente, encharcada, à chuva até pisar o passeio no lado de cá. Estava a uns trinta metros da minha janela. Num impulso abri a janela e pensei gritar-lhe para perguntar se precisava de ajuda. A pessoa sozinha seguia de cabeça baixa.

Com a janela aberta o silêncio fresco da noite entrou-me em casa. E com a chuva sustida, reprimida de espanto, ouvi a pessoa sozinha a chorar. Mas era um choro sem igual. Um chorar violento, um gemido que era uma lâmina, uma dor vulcânica, lágrimas de lava, um chorar ardente de alma toda. Não há choro maior que o choro de alma toda. A pessoa sozinha desabava à chuva. Desmoronava-se.

Há dores que não cabem no peito de uma pessoa sozinha.






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