quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Primários

Vivemos rodeados de símbolos e simbolismos. Não estou a falar de regras ou imposições nem sequer de religião. Estou a falar de símbolos que não estão escritos em lado nenhum, ninguém sabe muito bem a sua origem, de onde nasceram ou porquê. Alguém diz que é suposto agirmos de determinada maneira e tudo continua assim, sem mudança ou contestação.
Entre os símbolos e as regras há ainda os rituais que aparentemente trazem sorte. Condutas ou convenções sociais, comunitárias, familiares que, tal como os símbolos, não estão escritos em lado nenhum e também ninguém sabe muito bem justificá-los.

Na passagem de ano, com a entrada do ano novo, esse nosso lado mais primário assalta-nos de forma violenta. Toda a gente vai a correr comprar cuecas azuis. Cuecas azuis?! Sim, cuecas azuis. É suposto brindarmos o início do ano com cuecas azuis. Isso faz algum sentido?! Até dizem que devemos deitar fora as cuecas velhas. Mesmo para o lixo. Primários!

Toda a gente toma doze passas à meia-noite. Doze passas. Porquê, passas? Bom, passas. Adiante.

Toda a gente se cumprimenta e abraça quem está ao seu lado. Há quem suba a cadeiras ou bancos, há quem salte ao pé-coxinho com o pé direito no chão, há quem salte com os pés juntos. Primários. Todos.

Eu também.

Lá celebrei o novo ano com as belas das cuecas azuis (oferecidas, porque dizem que compradas não têm tanto efeito - primária!). Lá comi as doze passas e pedi os doze desejos - primária! Lá abracei e beijei quem estava ao meu lado, com um sorriso como se o mundo fosse acabar.

Chuviscava, alguém ao meu lado disse: "viva a chuva! A chuva veio para abençoar o ano novo!" Sorri.

Tomei champanhe à meia-noite. Mais um ritual. Não me apetecia champanhe, ali, à chuva, mas tive de beber como quem bebe a última água no deserto. E bebi com satisfação. Primária!

E mais. Passei a meia-noite debaixo de uma laranjeira. Como digo, chuviscava. Havia laranjeiras naquela Praça onde ecoariam as badaladas. Muitas laranjeiras aparadas com cuidado, quase esculpidas, carregadinhas de laranjas. Laranjeiras com enfeites de Natal. Lindas! As laranjas misturavam-se com o branco cintilante das luzinhas de Natal, que as cobriam como fios de prata.

As belas laranjeiras na Praça central da cidade cheia de gente e sorrisos e reboliço serviam de bom abrigo quando a chuva aumentava de intensidade. "A flor de laranjeira abençoa os casamentos, há-de abençoar o novo ano", alguém disse entre a chuva. Sorri.

Queremos mesmo acreditar que algo mais faça por nós mais do que nós próprios conseguimos fazer. Primários. Tão primários... Mas, pelo sim pelo não, venha de lá a flor de laranjeira.

Fotografia Ana Catarina Santos, Sevilha, 2013


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