Excertos do Prefácio que escrevi para o Catálogo da Exposição de Fotografia "Metáforas do Eu", de Francisco Mendes*.
«A Lua rodeada
de carrinhos de brincar e uma pista de comboios. A Lua de fato e gravata a
ensinar idioma cósmico às baleias. A Lua a correr na areia da praia com as
estrelas-do-mar. A Lua com as crateras sujas de terra preta a lavrar alfaces e
a regar couves. A Lua, de bengala e cartola, a fazer truques de magia à porta
do jardim-de-infância.
Ele quis
fotografar a Lua, o Eu da Lua.
E falou-lhe
dessa hipótese numa noite em que ela estava cheia. A Lua escutou-o em silêncio.
Ele, alto e esguio, ainda assim teve de esticar o pescoço para poder vê-la mais
de perto. As estrelas ali ao lado cintilavam de curiosidade. E ele explicava à
Lua cheia o que queria fotografar nela.
- “Primeiro
quero fotografar o teu interior, o que tu és ou o que tu achas que és. A
fotografia do ser. (Ele tratava a Lua por tu.) Em segundo lugar quero captar o
que revelas aos outros ou o que demonstras para o exterior. No fundo, o que tu
achas que os outros pensam que tu és, o que eles vêem em ti. É a fotografia do
ver. (E ela, atenta, escutava-o em silêncio. Cheia, brilhante. As estrelas cada
vez mais curiosas.) E, finalmente, quero fotografar a tua aspiração, aquilo que
tu verdadeiramente queres ser, o que sonhas ser. A fotografia do querer”.
A Lua respirou
fundo.
Enquanto ele falava ela já se imaginava de todas as maneiras. A Lua
amarrada com cordas grossas, tapada pelo brilho do Sol luminoso. A Lua vestida
de prata a entrar na Igreja para casar com Saturno, de fraque escuro. A Lua, de
cabelos soltos ao vento, a lançar papagaios de papel. A Lua a representar um papel
principal numa peça de teatro.
Ele
aguardou pela resposta da Lua. Perdeu noites de sono. E esperou…
Naquela noite
a Lua bateu-lhe à janela. Ele estava ansioso e deixou-a entrar com um sorriso.
Mas a Lua estava minguante. Ele percebeu a resposta. Não. Justificou que não
faria sentido, que ninguém entenderia aquele protagonismo de um mero satélite
da Terra. Ele rebateu, tentou demovê-la, persuadi-la do contrário. Até que a
Lua lhe apresentou o argumento decisivo. “Tu queres três retratos”. (A Lua
também o tratava por tu.) “Mas lembra-te que eu tenho quatro faces".
Ele
compreendeu. Fechou a janela. Voltou para a cama. E decidiu fotografar pessoas.»
Francisco Mendes, Metáforas do Eu |
(...)
«Ele não ia
fotografar apenas pessoas. Ele ia fotografar as nossas águas furtadas. Nossas.
Minhas. Tuas. Tu. Eu. A três dimensões, isto é, em dimensão verdadeira, sem
rede, sem subterfúgios, só ele e nós. Eu. Identidade.
Habituados
a uma sociedade de modelos mais simples e maniqueístas, na permanente
dialéctica entre o bom e o mau, entre o justo e o não justo, entre a virtude e
a falência dela, entre o Sol e a Lua, entre a luz e as trevas, vemo-nos
confrontados aqui com uma terceira dimensão que torna tudo mais complexo. E
completo.
Na Antiguidade
Clássica, na Grécia antiga, enquanto as sereias libertavam sons e notas
musicais, numa harmonia infinita, também as figuras femininas que iluminavam a
esfera da viagem dos sábios pelo conhecimento cantavam continuamente um
tríptico: o passado, o presente e o futuro. Láquesis, Cloto e Átropos,
respectivamente. Sem quaisquer cortes, sem que se distinguisse qual a voz do
passado, a do presente ou a do futuro. Três vozes como se fosse uma só, porque
somos sempre passado, presente e futuro.»
Francisco Mendes, Metáforas do Eu |
(...)
«Essa pergunta,
no fundo, fazemo-la todos os dias. Fá-la-emos até ao fim. Quando estivermos à
porta do céu ou do inferno para o julgamento das almas, alguém há-de
perguntar-nos: “E tu, quem és?”
“Quem sou?!”
Ouviremos um silêncio branco.
Nada.
“Quem sou…”
E aquele buraco negro de som.
[silêncio. pausa. branco. susto. silêncio. eu.]
“Quem sou eu”,
repetiremos para dentro sussurrando.
E ninguém para
nos ajudar. E ninguém para responder por nós. Apenas nós e o nosso silêncio.
Que responderemos? Na nossa mais profunda solidão, na nossa mais genuína
sinceridade, na nossa mais crua e visceral nudez de mundo, o que responderemos?
O que sou, o que vejo, ou o que quero…»
Ana Catarina
Santos
* Fotografias de Francisco Mendes
Exposição "Metáforas do Eu" - Projecto Zoom ID (responsabilidade social)
Em exibição no Espaço Cultural das Mercês, Príncipe Real
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