segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Retratos de mim

Excertos do Prefácio que escrevi para o Catálogo da Exposição de Fotografia "Metáforas do Eu", de Francisco Mendes*.



«A Lua rodeada de carrinhos de brincar e uma pista de comboios. A Lua de fato e gravata a ensinar idioma cósmico às baleias. A Lua a correr na areia da praia com as estrelas-do-mar. A Lua com as crateras sujas de terra preta a lavrar alfaces e a regar couves. A Lua, de bengala e cartola, a fazer truques de magia à porta do jardim-de-infância.

Ele quis fotografar a Lua, o Eu da Lua.

E falou-lhe dessa hipótese numa noite em que ela estava cheia. A Lua escutou-o em silêncio. Ele, alto e esguio, ainda assim teve de esticar o pescoço para poder vê-la mais de perto. As estrelas ali ao lado cintilavam de curiosidade. E ele explicava à Lua cheia o que queria fotografar nela.

- “Primeiro quero fotografar o teu interior, o que tu és ou o que tu achas que és. A fotografia do ser. (Ele tratava a Lua por tu.) Em segundo lugar quero captar o que revelas aos outros ou o que demonstras para o exterior. No fundo, o que tu achas que os outros pensam que tu és, o que eles vêem em ti. É a fotografia do ver. (E ela, atenta, escutava-o em silêncio. Cheia, brilhante. As estrelas cada vez mais curiosas.) E, finalmente, quero fotografar a tua aspiração, aquilo que tu verdadeiramente queres ser, o que sonhas ser. A fotografia do querer”.

A Lua respirou fundo. 

Enquanto ele falava ela já se imaginava de todas as maneiras. A Lua amarrada com cordas grossas, tapada pelo brilho do Sol luminoso. A Lua vestida de prata a entrar na Igreja para casar com Saturno, de fraque escuro. A Lua, de cabelos soltos ao vento, a lançar papagaios de papel. A Lua a representar um papel principal numa peça de teatro.

            Ele aguardou pela resposta da Lua. Perdeu noites de sono. E esperou…

Naquela noite a Lua bateu-lhe à janela. Ele estava ansioso e deixou-a entrar com um sorriso. Mas a Lua estava minguante. Ele percebeu a resposta. Não. Justificou que não faria sentido, que ninguém entenderia aquele protagonismo de um mero satélite da Terra. Ele rebateu, tentou demovê-la, persuadi-la do contrário. Até que a Lua lhe apresentou o argumento decisivo. “Tu queres três retratos”. (A Lua também o tratava por tu.) “Mas lembra-te que eu tenho quatro faces".

            Ele compreendeu. Fechou a janela. Voltou para a cama. E decidiu fotografar pessoas.»


Francisco Mendes, Metáforas do Eu



(...) 
«Ele não ia fotografar apenas pessoas. Ele ia fotografar as nossas águas furtadas. Nossas. Minhas. Tuas. Tu. Eu. A três dimensões, isto é, em dimensão verdadeira, sem rede, sem subterfúgios, só ele e nós. Eu. Identidade.

            Habituados a uma sociedade de modelos mais simples e maniqueístas, na permanente dialéctica entre o bom e o mau, entre o justo e o não justo, entre a virtude e a falência dela, entre o Sol e a Lua, entre a luz e as trevas, vemo-nos confrontados aqui com uma terceira dimensão que torna tudo mais complexo. E completo.

Na Antiguidade Clássica, na Grécia antiga, enquanto as sereias libertavam sons e notas musicais, numa harmonia infinita, também as figuras femininas que iluminavam a esfera da viagem dos sábios pelo conhecimento cantavam continuamente um tríptico: o passado, o presente e o futuro. Láquesis, Cloto e Átropos, respectivamente. Sem quaisquer cortes, sem que se distinguisse qual a voz do passado, a do presente ou a do futuro. Três vozes como se fosse uma só, porque somos sempre passado, presente e futuro.»


Francisco Mendes, Metáforas do Eu


(...)
«Essa pergunta, no fundo, fazemo-la todos os dias. Fá-la-emos até ao fim. Quando estivermos à porta do céu ou do inferno para o julgamento das almas, alguém há-de perguntar-nos: “E tu, quem és?”
“Quem sou?!”
Ouviremos um silêncio branco. Nada.
“Quem sou…”
E aquele buraco negro de som.

[silêncio. pausa. branco. susto. silêncio. eu.]

“Quem sou eu”, repetiremos para dentro sussurrando.
E ninguém para nos ajudar. E ninguém para responder por nós. Apenas nós e o nosso silêncio. Que responderemos? Na nossa mais profunda solidão, na nossa mais genuína sinceridade, na nossa mais crua e visceral nudez de mundo, o que responderemos? O que sou, o que vejo, ou o que quero…»



Ana Catarina Santos




* Fotografias de Francisco Mendes
Exposição "Metáforas do Eu" - Projecto Zoom ID (responsabilidade social)
Em exibição no Espaço Cultural das Mercês, Príncipe Real



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