"Só nos faltava esta"; "com amigos assim quem precisa de inimigos?", "mas quem é que decidiu que ele podia intervir, não bastava estar presente?" - foram algumas das frases que se ouviram à meia-boca, entre dentes, na sequência do jantar comício da noite de Coimbra. A estrela de cartaz era Marcelo Rebelo de Sousa.
Com a memória fresca do modo como Marcelo conseguiu há menos de três meses levantar o Congresso do PSD, no Coliseu de Lisboa, os mais de quinhentos apoiantes ali presentes para jantar esperavam um número efusivo semelhante, capaz de mobilizar as massas sociais democratas - tão amarguradas e desiludidas com o partido - para os últimos dias de campanha.
Havia um enorme ruído na sala e, ainda antes de ser servida a sopa, Marcelo Rebelo de Sousa aproximou-se do púlpito para proferir a intervenção mais aguardada da noite. Falou apenas catorze minutos, longe dos quarenta que interveio no congresso. E praticamente não se referiu a Paulo Rangel ou a Nuno Melo. Uma ou outra referência aqui ou ali, um leve passar a mão pelo pêlo, mas no essencial Marcelo inovou no argumentário: o principal motivo pelo qual ia votar na Coligação Aliança Portugal não era o facto de ele ser do PSD, nem pelo facto de a Aliança Portugal ser uma coligação que envolve o seu próprio Partido, nem por reconhecer mérito e qualidade aos membros da lista PSD-CDS, nem pelo facto de querer premiar o Governo e sancionar o PS (argumento que tem sido invocado até à exaustão nesta campanha). Não. Marcelo disse: "tenciono votar nesta aliança" (sendo que o "tenciono" pressupõe ainda uma margem razoável para dúvidas) "por causa de Jean Claude Juncker".
Os rostos na sala ficaram pálidos. E gelados. Não fora o bando de rapazes das jotas, com vozeirões exagerados e estridentes cânticos de claque de futebol, a abafarem o gelo que se abateu sobre a sala, e quase teriam sido audíveis as estalactites a partirem-se com o choque.
Rangel sorria tímida e discretamente. Melo nem por isso. Os convidados de honra, na mesa dos candidatos, procuravam disfarçar o incómodo. Na sala, viam-se cabeças a rodar para a pessoa sentada ao lado, na mesma mesa, sussurrando-se dúvidas e críticas aos ouvidos uns dos outros. Vai votar em Juncker, diz ele com orgulho. E não em Rangel e Melo ou no PSD-CDS. "Esta é que é a boa razão para se votar na AP" - gritou lá de cima para a sala timidamente aplaudir.
Marcelo foi mais longe. Além de ter baptizado a coligação de "AP" (iniciais de Aliança Portugal), referindo-se sempre à AP (ápê), e nunca à Aliança Portugal, o comentador televisivo quis picar e irritar particularmente o CDS-PP (há odiozinhos de estimação que nunca se esquecem), ao fazer publicamente uma referência elogiosa a Diogo Freitas do Amaral. É verdade que Freitas foi fundador do CDS, e foi nessa qualidade que foi invocado por Marcelo, mas já deixou o Partido de Portas há muito, já foi Ministro de um Governo de José Sócrates, não se tem inibido de criticar o executivo de Passos Coelho e apoucou Portas, rotulando-o de irresponsável. Freitas e CDS na mesma frase é mau sinal. E Marcelo fê-lo, mais ainda dando-o como exemplo: "estamos a ser dignos de Freitas do Amaral", disse Marcelo.Equiparou ao mesmo nível Freitas e Pinto Balsemão, conhecido como o homem-bom dos PPD's, o fundador do Partido acarinhado por todos os militantes.
A referência e o elogio do cruel Marcelo a Freitas quase pôs Nuno Melo a saltar da cadeira. Ficou branco e inerte. Um enorme balde de água fria para os "amigos PP's"...
Marcelo terminou a intervenção, desceu do palco e sentou-se à mesa, entre Melo e Rangel. Sorrisos amarelos. Os Jotas com cânticos futebolísticos. Entreolhares, comentários e críticas. Serviram a sopa. Gradualmente a imprensa começa a colocar nos jornais online a história do gelo coimbrão. As tv's e rádios começam a passar o inovador e surpreendente "argumentário de Marcelo". E Marcelo sorrindo.
Depois da sopa, vieram os discursos de Melo e de Rangel. Porém, ninguém falava noutra coisa senão nas palavras de Marcelo. "Vai votar no Juncker?!"; "Mas é disso que se trata?"; "Passou-se?!"; "Nem uma referência abonatória a Passos Coelho e ao Governo?!"
Mas o "número" do Professor não se ficaria por aí. Atento e espevitado, ao ver a reacção de toda a gente e ao começar a receber os feeds da imprensa, Marcelo "manifestou-se disponível" para se explicar à imprensa o que quis dizer, qual a mensagem exacta. Podia, a dita imprensa, porventura não ter compreendido bem o alcance da alocução do Professor. Mas a imprensa sentia-se esclarecida, sem dúvidas. Aliás, a intervenção tinha sido bem explícita e inequívoca. As palavras e ideias de Marcelo eram claras e repetiu-as de várias maneiras, para que não houvesse margem para dúvidas. Assim, a imprensa não sentiu necessidade de esclarecimentos adicionais.
Frustrado com a dispensa, Marcelo insistiu. Estava, nesse caso, disponível para falar à imprensa mas acerca de um outro assunto que "não tinha abordado durante a intervenção por respeito aos presentes, pois tratava-se de uma questão nacional e ele não queria misturar assuntos nacionais com assuntos europeus". Assim foi "vendido" aos jornalistas. Qual assunto, quiseram saber os jornalistas. Primeiro houve algumas respostas difusas sobre "assuntos vários", mas depois lá esclareceram que era para reagir a umas declarações quaisquer de Pedro Santana Lopes. Santana teria dito algo na CMTV (Correio da Manhã TV) que provocaria aquele ímpeto de necessidade de reacção por parte de Marcelo. Mais uma vez, a imprensa dispensou. Apenas a CMTV quis a reacção, como é natural.
Mas Marcelo não desmobilizava. Enquanto os jornalistas, sentados na mesma sala dos discursos, enviavam notícias e actualizações para as redacções, o comentador pululava por ali junto às mesas: metia-se, puxava conversa, perguntava como estavam, cumprimentava militantes e voltava a cirandar por ali. E não descansou enquanto não se sentou na mesa com os jornalistas.
Sem que ninguém lhe tivesse perguntado nada, fez questão de esclarecer que o discurso que fez era "amigo", era "bom para o Governo". Ninguém lhe perguntou, mas quis dizer que não estava a "entalar o Governo", nem estava a ser "mauzinho para o Rangel e o Melo". Quis apenas limitar-se a falar do Juncker porque é, de facto, o que pensa. Estava, no fundo, a fazer uma boa acção.
Marcelo jantou bem, em Coimbra. Além da sopa de legumes, repetiu a dose de lombo de porco assado. E em cima, como sobremesa, já perto da meia noite, ainda comeu uma rodela de ananás. Para facilitar a digestão. Estava satisfeito.
Com a memória fresca do modo como Marcelo conseguiu há menos de três meses levantar o Congresso do PSD, no Coliseu de Lisboa, os mais de quinhentos apoiantes ali presentes para jantar esperavam um número efusivo semelhante, capaz de mobilizar as massas sociais democratas - tão amarguradas e desiludidas com o partido - para os últimos dias de campanha.
Havia um enorme ruído na sala e, ainda antes de ser servida a sopa, Marcelo Rebelo de Sousa aproximou-se do púlpito para proferir a intervenção mais aguardada da noite. Falou apenas catorze minutos, longe dos quarenta que interveio no congresso. E praticamente não se referiu a Paulo Rangel ou a Nuno Melo. Uma ou outra referência aqui ou ali, um leve passar a mão pelo pêlo, mas no essencial Marcelo inovou no argumentário: o principal motivo pelo qual ia votar na Coligação Aliança Portugal não era o facto de ele ser do PSD, nem pelo facto de a Aliança Portugal ser uma coligação que envolve o seu próprio Partido, nem por reconhecer mérito e qualidade aos membros da lista PSD-CDS, nem pelo facto de querer premiar o Governo e sancionar o PS (argumento que tem sido invocado até à exaustão nesta campanha). Não. Marcelo disse: "tenciono votar nesta aliança" (sendo que o "tenciono" pressupõe ainda uma margem razoável para dúvidas) "por causa de Jean Claude Juncker".
Os rostos na sala ficaram pálidos. E gelados. Não fora o bando de rapazes das jotas, com vozeirões exagerados e estridentes cânticos de claque de futebol, a abafarem o gelo que se abateu sobre a sala, e quase teriam sido audíveis as estalactites a partirem-se com o choque.
Rangel sorria tímida e discretamente. Melo nem por isso. Os convidados de honra, na mesa dos candidatos, procuravam disfarçar o incómodo. Na sala, viam-se cabeças a rodar para a pessoa sentada ao lado, na mesma mesa, sussurrando-se dúvidas e críticas aos ouvidos uns dos outros. Vai votar em Juncker, diz ele com orgulho. E não em Rangel e Melo ou no PSD-CDS. "Esta é que é a boa razão para se votar na AP" - gritou lá de cima para a sala timidamente aplaudir.
Marcelo foi mais longe. Além de ter baptizado a coligação de "AP" (iniciais de Aliança Portugal), referindo-se sempre à AP (ápê), e nunca à Aliança Portugal, o comentador televisivo quis picar e irritar particularmente o CDS-PP (há odiozinhos de estimação que nunca se esquecem), ao fazer publicamente uma referência elogiosa a Diogo Freitas do Amaral. É verdade que Freitas foi fundador do CDS, e foi nessa qualidade que foi invocado por Marcelo, mas já deixou o Partido de Portas há muito, já foi Ministro de um Governo de José Sócrates, não se tem inibido de criticar o executivo de Passos Coelho e apoucou Portas, rotulando-o de irresponsável. Freitas e CDS na mesma frase é mau sinal. E Marcelo fê-lo, mais ainda dando-o como exemplo: "estamos a ser dignos de Freitas do Amaral", disse Marcelo.Equiparou ao mesmo nível Freitas e Pinto Balsemão, conhecido como o homem-bom dos PPD's, o fundador do Partido acarinhado por todos os militantes.
A referência e o elogio do cruel Marcelo a Freitas quase pôs Nuno Melo a saltar da cadeira. Ficou branco e inerte. Um enorme balde de água fria para os "amigos PP's"...
Marcelo terminou a intervenção, desceu do palco e sentou-se à mesa, entre Melo e Rangel. Sorrisos amarelos. Os Jotas com cânticos futebolísticos. Entreolhares, comentários e críticas. Serviram a sopa. Gradualmente a imprensa começa a colocar nos jornais online a história do gelo coimbrão. As tv's e rádios começam a passar o inovador e surpreendente "argumentário de Marcelo". E Marcelo sorrindo.
Depois da sopa, vieram os discursos de Melo e de Rangel. Porém, ninguém falava noutra coisa senão nas palavras de Marcelo. "Vai votar no Juncker?!"; "Mas é disso que se trata?"; "Passou-se?!"; "Nem uma referência abonatória a Passos Coelho e ao Governo?!"
Mas o "número" do Professor não se ficaria por aí. Atento e espevitado, ao ver a reacção de toda a gente e ao começar a receber os feeds da imprensa, Marcelo "manifestou-se disponível" para se explicar à imprensa o que quis dizer, qual a mensagem exacta. Podia, a dita imprensa, porventura não ter compreendido bem o alcance da alocução do Professor. Mas a imprensa sentia-se esclarecida, sem dúvidas. Aliás, a intervenção tinha sido bem explícita e inequívoca. As palavras e ideias de Marcelo eram claras e repetiu-as de várias maneiras, para que não houvesse margem para dúvidas. Assim, a imprensa não sentiu necessidade de esclarecimentos adicionais.
Frustrado com a dispensa, Marcelo insistiu. Estava, nesse caso, disponível para falar à imprensa mas acerca de um outro assunto que "não tinha abordado durante a intervenção por respeito aos presentes, pois tratava-se de uma questão nacional e ele não queria misturar assuntos nacionais com assuntos europeus". Assim foi "vendido" aos jornalistas. Qual assunto, quiseram saber os jornalistas. Primeiro houve algumas respostas difusas sobre "assuntos vários", mas depois lá esclareceram que era para reagir a umas declarações quaisquer de Pedro Santana Lopes. Santana teria dito algo na CMTV (Correio da Manhã TV) que provocaria aquele ímpeto de necessidade de reacção por parte de Marcelo. Mais uma vez, a imprensa dispensou. Apenas a CMTV quis a reacção, como é natural.
Mas Marcelo não desmobilizava. Enquanto os jornalistas, sentados na mesma sala dos discursos, enviavam notícias e actualizações para as redacções, o comentador pululava por ali junto às mesas: metia-se, puxava conversa, perguntava como estavam, cumprimentava militantes e voltava a cirandar por ali. E não descansou enquanto não se sentou na mesa com os jornalistas.
Sem que ninguém lhe tivesse perguntado nada, fez questão de esclarecer que o discurso que fez era "amigo", era "bom para o Governo". Ninguém lhe perguntou, mas quis dizer que não estava a "entalar o Governo", nem estava a ser "mauzinho para o Rangel e o Melo". Quis apenas limitar-se a falar do Juncker porque é, de facto, o que pensa. Estava, no fundo, a fazer uma boa acção.
Marcelo jantou bem, em Coimbra. Além da sopa de legumes, repetiu a dose de lombo de porco assado. E em cima, como sobremesa, já perto da meia noite, ainda comeu uma rodela de ananás. Para facilitar a digestão. Estava satisfeito.
É impressionante como consegues conciliar beleza e lucidez!
ResponderEliminarO Marcelo sabe-a toda, mas não fui na cantiga. Creio ter percebido a jogada. Excelente texto. Senti-me lá.
ResponderEliminaresclarecedor !!
ResponderEliminarExcelente !!
ResponderEliminarFarsante...
ResponderEliminarEXCELENTE TEXTO, ANA CATARINA!!!
ResponderEliminarMarcelo jantou bem, em Coimbra, mas o Rangel e o Melo tiveram uma indigestão.
Estou satisfeita com o enorme balde de água fria para cima do Paulo Rangel e do Nuno Melo.
Martin Schulz ou Jean-Claude Juncker?
Vamos lá ver no Domingo!
Magnífico texto. Saio bem mais rico da sua descrição.
ResponderEliminarExcelente texto!
ResponderEliminarGostei de a ler. Obrigada.
ResponderEliminar